XIII – O buraco

Boa noite errantes da galáxia! Lua quarto minguante, 13 graus em Porto Alegre e hoje vamos entrar pelo buraco da cigana.

1

bu.ra.co [buˈraku]

nome masculino

  1. abertura em qualquer superfície ou corpo;
  2. brecha, orifício, furo, fenda;
  3. cova, cavidade;
  4. abrigo de um animal, toca;
  5. figurado – casa pequena e humilde;
  6. figurado – falha; lacuna; falta;
  7. certo jogo de cartas

O tatu cava um buraco a procura de uma lebre, quando sai pra se coçar, já está em Porto Alegre.[1]

I got a hole in my pocket:

“É uma idéia comum que, em dado dispositivo, o vazio é um buraco. Há algo de negativo lá dentro, há uma falta, um defeito de fabricação, um erro em algum lugar. Nesse caso, o vazio sempre sobrevém em um dispositivo que já está aí, já está formado, e que o vazio vem interromper, enviesar, ou até mesmo aniquilar. Ele pode ser decorrência de uma falta de vigilância, de uma falha humana ou de um erro da natureza, da degradação das coisas ou da deficiência de um sistema. (…) Mas quando executado conscientemente, segundo um projeto bem definido, ele põe em risco uma estrutura existente e se torna provocador; é praticamente uma manifesto (…). Parece, então, que o vazio não se manifesta, de modo algum, apenas por um buraco, uma fissura em um dispositivo, mas, sobretudo, pelo espaço de acolhida que ele abre – tornando possíveis todas as espécies de arranjos entre mobilidade e estabilidade -, o que inverte a situação de maneira perturbadora. Qual é esse espaço de acolhida?” [2]

Buracos que vc faz
Buracos que vc encontra
Buracos que vc olha
Bracos que vc entra
Buracos de que vc sai
Buracos reincidentes
Buracos que você atravessa
Buraco-fundo do poço
Buraco-passagem
Buraco-espaço vago
Buraco-lugar de acolhimentos inesperados
Uma erva daninha
Um ninho de passarinho
Uma cama humana na noite fria
Buraco da agulha
Buraco da fechadura
Buraco de ozonio
Buraco negro
Buraco de minhoca
Buracos
Ouvidos, olhos, boca, nariz, umbigo, uretra, vagina e cu
E todos os poros
Buracos no chão, nas paredes, no teto.
Teto de buracos
Buracos em qualquer lugar

BURACO MÍSTICO

Sua simbologia está associada ao inconsciente, uma abertura para o desconhecido, o caminho através do qual surgem as ideias. É um símbolo feminino, representa um aspecto de fertilidade, espiritualização, entre os índios era associado à vagina. Pode também expressar origem ou matriz.

2

1.
Ando pela rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio…
Estou perdido… Sem esperança.
Não é culpa minha.
Leva uma eternidade para encontrar a saída.
2.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Mas finjo não vê-lo.
Caio nele de novo.
Não posso acreditar que estou no mesmo lugar.
Mas não é culpa minha.
Ainda assim leva um tempão para sair.
3.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Vejo que ele ali está.
Ainda assim caio… É um hábito.
Meus olhos se abrem.
Sei onde estou.
É minha culpa.
Saio imediatamente.
4.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Dou a volta.
5.
Ando por outra rua.[3]

7

É isto que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas comportam, as lacunas, por vezes dramáticas, mas às vezes nem isso. (…) É talvez nesses buracos que se faz o movimento. A questão é justamente como fazer o movimento, como perfurar a parede para não dar mais cabeçadas. Talvez não se mexendo demais, não falando demais: evitar os falsos movimentos, residir onde não há mais memória.[4]

REFLEXÕES DO FILÓSOFO (DE RUA)

“Não nos resta saída, o buraco está em nós e nós estamos no buraco. Então, entremos dentro dele. Cultivemos o buraco. Abandonemos o buraco da falta pelo buraco da busca. Buraco por buraco, que ele seja nosso. Criemos o buraco a nosso modo e, se preciso for, a revelia dos outros. Criemos um buraco, não para preenchê-lo, nem para aumentá-lo, criemos nosso buraco para deixá-lo ali, conosco. Ele é nosso buraco e de mais ninguém. É o buraco mais importante que tem porque é nosso e precisa ser cultivado, e mesmo cultuado, a nosso modo. Quem quiser pode se emburacar, não paga nada. Mas não há um compromisso, fiquem à vontade. Buraco, buraquinho, buracão. Grande ou pequeno, limpo ou sujo: é o meu buraco. Não é onde me escondo, é onde me crio. É o meu buraco.”[5]

5

O BURACO
Arnaldo Antunes

o buraco ensina a caber
a semente ensina a não caber em si
a terra sabe receber
a caveira ri
o céu ensina a tudo caber
o corpo cabe
a terra sabe receber
o cadáver

corpo enterrado
sobre corpo enterrado
adubando o chão
a morrer
ninguém foi ensinado
e todos morrerão

a chuva ensina a chorar
o tempo ensina a parar de chover
a terra sabe receber
a chuva

o buraco ensina tudo a acabar
no fundo
a terra sabe receber
o defunto

corpo enterrado
sobre corpo enterrado
adubando o chão
a morrer
ninguém foi ensinado
e todos morrerão

….e se você olhar longamente para um buraco, o buraco também olhará para dentro de você.[6]

BURACOS DE MATTA CLARK

Ao romper a superfície e expor a espessura do corte sem acabamento, tanto no espaço quanto na fotografia e nas fotomontagens, Matta-Clark provoca uma crítica à estabilidade da arquitetura e ao próprio sentido de espaço habitável. Um novo significado, um silêncio surge nessas justaposições, pelo reconhecimento inverso, pelo buraco, pelo vazio, e, sobretudo, pelo jogo da montagem e desmontagem: processo de criação e de destruição possíveis pelo ato do corte no objeto arquitetônico.[7]

4

É a partir do vazio, do buraco, do recorte, que se pode desenvolver o pensamento do espaço com seus limites e lugares de conexão, buscando uma relação entre a estrutura arquitetônica e sua atualização pela arte. Os jogos do dentro e fora e a combinação de diversos lugares do espaço são objetos de atenção na obra de Matta-Clark.[8]

FILOSOFIA DO BURACO

“Não recuemos diante do paradoxo: o buraco é o fundamento. O homem perdeu a base. Já não o amparam mitos, linguagem, política – nada.

O espanto abriu um buraco entre o homem e o mundo. O homem espantado se pôs a contar histórias para explicar os mistérios do mundo em que vivia. O homem é um animal mítico por isso. O buraco de Tales veio depois. A cada buraco inesperado, abre-se novo capítulo na história do pensamento. O saber nasce da queda. Sabendo que ninguém pode socorrê-lo, o filósofo procura saída por si mesmo.

O olhar à distância abre buracos, mina o solo em que pisamos, o chão se fende, o andar torna-se inseguro, o abismo se aprofunda, abisma-se no ilimitado.

Nem o mundo mítico estava livre do buraco. Aos pés de Perséfone, uma jovem primaveril, saudável, florescente, abre-se uma fenda, e ela cai nos braços de Hades, o imperador do mundo das sombras. Que fazer? Perséfone passou a dividir a existência entre a vida e a morte. Perséfone poderá ser símbolo de nós todos. Perdendo a segurança do solo, a existência de Perséfone se tornou literalmente unheimlich (sem-lar). Pisando no vazio, ela perdeu o lar (Heim).

Não nos assuste o buraco. Sai do buraco linguagem renovada, baluarte de mundos renovados. Para que o ir e vir se revigore, importa que o buraco se mantenha aberto. O vigor da renovação aproxima a filosofia das artes. Linguagem que não se renova fecha o buraco, aniquila a vida.

O homem é vítima e autor dos buracos em que cai. Na queda, o homem é causa e corpo precipitado. No buraco, inventa linguagens. Sempre que a consciência do buraco se aprofunda, a linguagem se renova. A memória nasce para recordar o que perdemos.”[9]

3

PROPOSIÇÃO DO ARCANO

Re-parar nos buracos. Escutar os buracos. Imaginar os buracos. Delirar os buracos. Entrar nos buracos. Sair dos buracos.

ESTRELAS DO ARCANO

Quem quiser somar estrelinhas mágicas, pode mandar o percurso da busca pelos buracos urbanos/humanos através do aplicativo strava (5 estrelas); pode mandar um texto enriquecido com devaneios e narrativas da experiência esburacada (6 estrelas); pode mandar vídeos (4 estrelas), fotos (2 estrelas), e áudios (2 estrelas).

Para receber as estrelas da cigana é só enviar os elementos que você puder recolher dentro do seu pequeno possível para arcanosurbanos@gmail.com (pode usar o drive, sendspace ou wetransfer).

***

Optchá! Fortuna! E boa busca de buracos!

[1] CAPARELLI, S. Boi da cara preta. 15. ed. Porto Alegre: L & PM, [s.d.]. Para a presente edição de Comunicação & Educação esta poesia e as duas subseqüentes foram extraídas de: POESIA INFANTIL. Cadernos de poesia brasileira. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1996. p. 38 e 39.

[2] CAUQUELIN, Anne.  Freqüentar os incorporais. São Paulo: Martins Fontes,  2008, p. 66-67.

[3] Texto extraído de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, de Sogyal Rinpoche (Ed. Talento/Palas Athena)

[4] DELEUZE, Gilles.  Coversações. p. 176.

[5] Luis Fernando Quissak. http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2015/05/do-buraco-filosofia-saiu-e-no-buraco.html

[6] Nietzsche sendo torcido. Aforismo 146 desossado. Para além do bem e do mal. p. 70. “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha pra dentro de você”

[7] CIDADE, Daniela. OS CORTES DE GORDON MATTA-CLARK: um ritual de destruição e reconstrução da arquitetura. Tese de doutorado. PROPAR-UFRGS, 2010, p. 20. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/27864

[8] Idem, p. 78

[9] Donaldo Schüler. Por uma filosofia do buraco. Texto completo em: http://www.revistacontemporanea.org.br/revistacontemporaneaanterior/site/wp-content/artigos/artigo109.pdf

Deixe um comentário